pra repensar: marmita de gringo
antes que você saia dessa salinha de bate-papo, dá uma chance pra esse debate. ele vai além de uma relação. me dá cinco minutinhos.
faz um tempinho que, entre uma deslizada e outra no TikTok, vejo o debate sobre o fenômeno – se é que a gente pode chamar assim – das marmitas de gringo tomando espaço. e várias coisas me passam pela cabeça.
calma. antes que você saia dessa salinha de bate-papo, dá uma chance pra esse debate. ele vai além de uma relação. me dá cinco minutinhos.
combinado? então, bora.
a primeira coisa é: dá super pra gente problematizar esse endeusamento de gringos sem usar esse nome péssimo, né? afinal, a gente tá falando de uma relação que merece mais respeito do que isso. vamos chamar de relacionamento multicultural.
e aqui, além dessa múltipla cultura, vamos focar no inter-racial. foi daqui que vi sair o primeiro debate, e é nele que vou focar.
o racismo sempre esteve presente na minha vida – fosse entre os coleguinhas que riam do meu cabelo, a vizinha que me colocou pra fora da brincadeira por achar que roubei suas bijuterias, ou os meninos que achavam pavorosa a ideia de ficar com alguém como eu.
as meninas populares eram aquelas brancas, com cabelos longos e lisos ou ondulados. se tivessem olhos claros, melhor ainda. ah, e magras. claro que eram magras.
eu, uma menina baixa, com cabelos crespos, gorda e negra, aí não.
foi só quando eu coloquei os dreads que descobri o que era ser atraente no ramo amoroso. eu já tinha passado dos 22 quando descobri que não precisava aceitar qualquer coisa. quer dizer, uma coisa é descobrir, outra é aplicar.
não quero transformar isso aqui em um picolé de limão, mas ainda lembro de subir escondida as escadas da casa do cara de quem eu gostava em plena madrugada, me esgueirando para não ser vista pelos seus pais ou, pior ainda, por sua avó. “ela é das antigas. não ia querer saber que eu ia dar netos de cabelo como o seu. eu acho lindo, mas né. ela é assim… é melhor vocês não se cruzarem”.
eu achava que ele era ótimo. dá pra acreditar?!
tá bom. mas, Lola, o que a sua péssima vida amorosa tem com o fato de mulheres endeusarem seus maridos gringos?
no caso das mulheres negras, tudo.
crescer se sentindo indigna de amor, acreditando que você nunca vai ter uma parceira ou parceiro que te valorize, enquanto todas as suas amigas já tiveram duas, quatro, sete experiências românticas é uma dor que as mulheres negras entendem bem.
o amor não é para você. a fragilidade também não.
você pode esquentar a cama. é sexy, é desejada. mas psiu, é segredo.
pra quê dividir? vamos deixar entre a gente. é tão mais gostoso assim.
os gestos românticos, as cenas de filmes… eles não pertencem a alguém como você.
é difícil, mas a gente vai se acostumando a ouvir não. ou a simplesmente não ouvir nada. ninguém interage com as ignoradas.
daí, você, que viveu sem atenção, sem gestos, encontra em outro país alguém que quer segurar sua mão. que não te faz subir as escadas escondida, que te valoriza na cama – porque sim, não podemos deixar de lado o fator fetiche que é o combustível para várias dessas relações – mas que quer te conhecer para além dos lençóis.
que te quer por inteira.
que vai te apresentar para a família. para os amigos. para o mundo.
como explicar para essa pessoa, que não sabe nem lidar com essa sensação de amor, que isso não é uma experiência universal com gringos?
ela não sabe. o que ela sabe é que durante toda a sua vida, isso foi negado.
ela conhece a vergonha, a mágoa, a solidão.
agora, ela tá começando a aprender o que é amor.
é difícil fazer com que mulheres que passaram pela solidão por longos anos não universalizem suas experiências com seus parceiros internacionais. porque, para elas, deu certo. para elas, eles – diferente dos brasileiros – souberam cuidar, assumir, reconhecer, amar.
aí eu te pergunto: o que a gente precisa problematizar são essas mulheres ou como a sociedade vê as relações afetivas com pessoas pretas?
aqui, a gente tá falando sobre mulheres porque estou fazendo um bem bolado com a minha própria experiência. mas um debate sobre o afeto que direcionamos ao corpo negro é necessário.
esse foi o segundo ponto. bora para o terceiro.
eu sou contra o endeusamento de relacionamentos multiculturais. ponto.
hoje, há quase cinco anos dividindo a vida com a minha esposa franco-libanesa, tenho ainda menos vontade de usar minha relação como nicho para as plataformas de conteúdo.
minha parceira é incrível. ela me apoia, me ama, me valoriza. me escuta, se esforça para aprender meu idioma, para fazer parte da minha cultura, do meu universo. se educa sobre racismo, sobre gordofobia, quer me ver bem. me faz sentir a pessoa mais especial do mundo.
mas ela não faz isso por conta da nacionalidade. é por ser ela. e por ser a gente.
o abuso não escolhe CEP. você pode ter relações incríveis, verdadeiras histórias de amor de cinema com gringos. e pode não ter.
quando a gente faz parte desse mundinho do intercâmbio, vê muitas pessoas que acabam se submetendo a abusos, relações péssimas que se tornam violentas por conta de aparências, para manter os filhos, uma casa ou um visto. mas esses vídeos não estão viralizando.
hoje, eu não indicaria a ninguém um relacionamento multicultural. nem minha esposa. a gente ri disso, mas é a mais pura verdade. porque, o dia a dia de quem segue por esse caminho é de muita adaptação.
é um outro idioma.
outra visão de vida.
outros costumes.
outras prioridades.
muito trabalho.
muito, muito mesmo.
não poder soltar um “porra, mas que merda você tá fazendo nessa caralha” não é nem de perto o mais difícil. nem poder falar “me dá aquele trem ali” e saber que o outro não faz ideia do que é o “trem”, nem “aquele”, quem dirá o “ali”.
eu fico triste, muito mesmo, sempre que vejo alguém que acabou se relacionando com um gringo dizendo coisas como “ai, espero que meu filho tenha esses olhos claros, esse cabelo loiro”. quando a gente tem uma beleza incrível, mas não reconhece. e o pior: não questiona de onde vem esse desejo de que a criança se pareça esse gringo.
ou o porquê de olhar para essas características e apreciar tanto.
porque a gente não escuta por aí alguém dizendo “nossa, quero que meu filho seja pretinho como uma barra de Diamante Negro”. ou “quero que os olhinhos dele sejam escuros assim como os dele”.
eu acho que esse debate todo é ótimo pra gente questionar o que a gente quer num parceiro. a aprender que estar num relacionamento saudável não é status, é sobre parceria. é sobre escolher aquela – ou aquelas – pessoas diariamente.
eu já fui a pessoa que pensava “que sorte, eu nunca pegaria uma pessoa dessa no Brasil”. e foi necessária muita terapia e estudo, muito estudo, pra entender que isso não é um critério para relacionamento. mas essas coisas vêm do questionamento, o que muita gente não faz. talvez por não conseguirem bancar essa reflexão, talvez por não querer.
mas, no fim, como a gente não pode cobrar senso crítico de todo mundo, é mais fácil tomar as rédeas desse debate e refletirmos sozinhos, com a gente mesmo: onde é que tá o valor da relação que temos, que queremos?
é um primeiro passo para a gente amadurecer.
créditos 👇
essa newsletter saiu porque a Lola pensou nela (que esquisito falar da gente na terceira pessoa!)
a arte é uma reprodução da pintura: the wonders of nature da Rene Magritte
e existe porque você está aí do outro lado para ler
e, por enquanto, é essa a equipe ❤️
Essa news é o retrato da minha experiência. Queria colocar suas palavras num outdoor e dividir com todas as mulheres pretas, pra evitar que elas passem pelo mesmo.
Espero que a gente consiga receber o amor (romântico ou não) pacífico e honesto que a gente merece ❤️
Obrigada por tanto!